Uvas-passas: de alimento erótico da Bíblia à polêmica das ceias de fim de ano

  • Rosana Ribeiro
  • Publicado em 26 de dezembro de 2023 às 22:00
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Você pode não gostar, mas a uva-passa fez história por ser nutritiva, fácil de carregar e de armazenar

Nas mesas das festas de fim de ano esta frutinha polêmica está sempre presente – foto Freepik

 

O mês de dezembro traz não apenas a magia do Natal, mas também uma polarização gastronômica que divide opiniões: ceia com ou sem passas?

Enquanto alguns preferem evitar a frutinha, outros não conseguem imaginar as festividades sem esse complemento especial.

Pois a história do alimento é tão longeva quanto rica em interpretações. Uvas-passas são mencionadas em textos do Antigo Testamento da Bíblia, o que leva a crer que elas já eram consumidas há pelo menos 4 mil anos.

No fundo, a proposta da fruta desidratada faz todo o sentido, sobretudo em um mundo antes da geladeira. Era uma forma de conservar o alimento por meses — e tê-lo à disposição mesmo nos meses de inverno rigoso.

Camila Landi, gastrônoma e historiadora, destaca que as passas começaram como uma resposta à necessidade de sobrevivência na Antiguidade.

“Sementes e frutas que caíam das árvores e secavam naturalmente [serviam de alimento]”, explica ela

A gastróloga Karyna Muniz, consultora especialista em alimentos e bebidas, concorda que, como boa parte da história da alimentação, esse consumo começou de forma acidental, por observação das uvas que “caíam dos pés e secavam naturalmente ao sol”.

Mas o gostinho agradou.

“E após a descoberta de um sabor intenso e um dulçor específico, passaram a ser amplamente consumidas durante a Roma Antiga”, afirma Muniz.

Associadas à energia necessária nos intensos invernos do hemisfério norte, as passas se tornaram comuns nas mesas festivas de fim de ano.

Segundo Muniz, o consumo inicialmente relacionou-se ao solstício de inverno, impulsionando a necessidade de alimentos com maior validade.

“Chegou ao mundo todo com a mesma simbologia para o período: a promessa o povo de um novo ciclo de transformações, de prosperidade e fartura”, aponta a historiadora.

Gérson Leite de Moraes, teólogo e historiador, destaca que as passas, frequentemente mencionadas na Bíblia, têm conotações tanto eróticas quanto práticas. Elas eram alimentos fáceis de transportar e favoritos para os viajantes da Antiguidade.

Há passagens que associam a passa a aspectos eróticos e aquelas que valorizam o alimento como algo prático, nutritivo e de fácil transporte e conservação.

“Quanto à sexualidade, há aspectos positivos e negativos”, explica ele, em conversa com a BBC News Brasil. “No livro Cântico dos Cânticos, [a uva-passa] aparece em um poema que é feito pela esposa ao seu amado.”

O trecho exalta o marido, dizendo que “seu fruto é doce ao meu paladar”. E depois de destacar que “faz-me entrar na taberna, seu estandarte sobre mim é amor”, o eu-lírico pede para que o amado a refaça “com bolos de uva-passa” porque ela está “doente de amor”.

Outra passagem de cunho sexual está no livro de Oseias, quando Deus repreende aqueles que “se voltam para outros deuses” envolvendo-se com prostituição e adultério. No texto, estes “gostam de tortas de uva-passa”.

Como explica Moraes, “chama a atenção a presença da maçã e das uvas-passas no contexto do relacionamento sexual, porque são dois alimentos associados à questão afrodisíaca”.

O teólogo lembra que rituais pagãos antigos costumavam ofertar à deusa da fertilidade um bolo de uvas-passas.

Hoje, além de sua importância histórica, as uvas-passas são reconhecidas como superalimento, oferecendo benefícios à saúde, incluindo regulação intestinal, fortalecimento imunológico e propriedades antioxidantes.

Benefícios: libido e saúde em geral

Mas a carga simbólica não é por acaso. Analisando as propriedades do alimento, toda essa semântica encontra sentido.

Primeiro: a ideia do açúcar concentrado e da riqueza de nutrientes em um alimento pequenino, facilmente carregado e guardado.

“Quando desidratamos uma uva, ou outro ingrediente, conservamos seus açúcares naturais e retiramos sua umidade, o que a deixa ainda mais doce, concentrada em sabores e nutrientes”, conta Landi.

“Há quem goste e quem odeie. O fato é que esse elemento era um método de conservação para evitar a ausência de alimentos disponíveis e, também, sendo uma fonte de energia ao homem.”

Por fim, uma possível explicação para o uso afrodisíaco que aparece na Bíblia.

“Dá energia: a frutose aumenta o nível energético, aumentando o rendimento físico em atividades do cotidiano”, comenta ela.

E não só. Hoje se sabe que a uva-passa tem arginina, “um amionácido importante para estimular a libido”.

Hoje se sabe que as uvas-passas trazem muitos benefícios para a saúde.

Na ceia de Natal brasileira, o uso esporádico das passas ganha destaque festivo. Rafael Tonon, escritor e jornalista de gastronomia, destaca o apelo festivo do ingrediente, que se tornou uma tradição ocasional para os brasileiros.

“Para o brasileiro, tornou-se uma coisa esporádica. E como o Natal pede uma circunstância, uma certa pompa, ela aparece nesta época”, diz Tonon.

Assim, a tradição das passas na ceia de Natal, enraizada em uma longa história, continua a dividir opiniões, mas sua presença festiva persiste como um elemento marcante nas celebrações de fim de ano.

*Informações G1 Mundo