A batalha para recuperar manuscritos de Carolina Maria de Jesus em mãos de terceiros

  • Nene Sanches
  • Publicado em 31 de maio de 2023 às 20:00
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Fungos, rasgos e acervo guardado por terceiros: a batalha para recuperar manuscritos de Carolina Maria de Jesus, que morou em Franca

“Um dia depois que minha mãe morreu, foi me entregue uma carta em que ela me pedia várias coisas”, lembra a professora Vera Eunice Jesus Lima, que é filha da escritora Carolina Maria de Jesus e dedica sua vida à preservação do legado e memória da mãe.

“Entre elas, pediu que eu cuidasse do acervo dela e que fosse atrás dos cadernos que deu para outras pessoas.”

Publicada em 40 países, Carolina Maria de Jesus é um dos principais nomes da literatura e cultura brasileiras.

Célebre moradora da favela do Canindé, em São Paulo, depois de ter trabalhado em Franca, é dona de uma vasta obra em que traz suas perspectivas, enquanto mulher preta e periférica, sobre o cotidiano e a realidade brasileira – um dos pilares de seu principal livro, o diário Quarto de Despejo (ed. Ática, R$ 45, 200 págs.), lançado em 1960.

Má conservação

No entanto, escritos inéditos podem ter dificuldade para ser publicados: muitos manuscritos da autora estão degradados e têm se perdido devido à má conservação de parte de seu arquivo, que está em Sacramento, Minas Gerais, sua cidade natal.

Mantidas em uma sala sem climatização e fiscalização própria, várias páginas de seus cadernos estão tomadas por rasgos, proliferação de fungos, cortes, manchas e trechos molhados.

“Iniciei a pesquisa nos arquivos em 2001, quando passei a ler a Carolina dos manuscritos e datiloscritos. Há textos que li que hoje são ilegíveis”, diz a pesquisadora Raffaella Fernandez, que estuda a obra de Carolina há mais de 20 anos e faz parte do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (USP).

“Alguns textos não tem uma completude de publicação, o que revela o impacto da falta de catalogação e conservação correta de seu armazenamento”, diz Raffaella Fernandez.

Resíduos

Em 2019, a pesquisadora expôs o estado de desintegração do acervo no livro A poética de resíduos de Carolina de Jesus (ed. Aetia Editorial, R$ 111, 346 pgs.).

“São cadernos que já foram retirados do lixo e reaproveitados, porque Carolina não tinha dinheiro para comprá-los. Então, já estavam em situação de putrefação ou fragmentados”, contextualiza Rafaella.

Ela continua: “Essa materialidade demonstra um dos aspectos dessa poética de resíduos, tanto na materialidade quanto na maneira como a escritora reaproveitava diversas formas de discursos literários e não-literários”.

Hoje, o conteúdo de Carolina está ainda mais disperso. “Há partes de romances ilegíveis ou inacabadas. Quanto mais tempo passa sem preservação, menos temos condições de ler a obra na íntegra. A construção de um Fundo Carolina é mais do que urgente”.

Material desapareceu

Além da falta de climatização, Vera Eunice diz já ter visto rachaduras, umidade e mofo nas paredes do espaço, além de pó nas prateleiras. Conta ainda que parte do material sumiu: “Deixei muitas fotos lá e hoje tem pouquíssimas. Se perdeu quase tudo”, lamenta.

O interesse de Vera Eunice é que o material receba o tratamento e restauração adequados e possa ser visto por fãs da escritora.

“Eu não quero esses cadernos para mim, não vão ficar parados na minha casa. Um dia, eu vou morrer. Quero que o mundo veja”, diz Vera Eunice Jesus Lima.

A situação do arquivo foi denunciada em abril pelo portal Nós, Mulheres da Periferia, mas Vera Eunice conta que faz mais de duas décadas que tenta resgatar o arquivo da mãe que está em Sacramento, justamente pela forma como está guardado.

Em Sacramento

O material foi doado à cidade em 1999 e entregue ao então vereador Carlos Alberto Cerchi – que, entre 2017 e 2020, foi secretário da Cultura.

“Quando recebi os cadernos, estavam guardados em uma caixa de papelão e vi que já estavam desmanchando. Como fui bem tratada em Sacramento, cedi e deixei o material lá. Afinal, foi onde ela nasceu. Do jeito que eu recebi, entreguei”, recorda Vera Eunice.

Menos de cinco anos depois, retornou à cidade e viu que o material estava do mesmo jeito: em uma caixa de papelão, debaixo de uma prateleira.

O local onde as obras de Carolina estão há pelo menos 15 anos costumava ser a cela de um antigo presídio, o que também gera controvérsias.

Mudança de lugar

Foi ali, onde funciona o Arquivo Público Municipal – Cônego Hermógenes Cassimiro de Araújo Brunswik, que Carolina Maria de Jesus e sua mãe foram presas e espancadas por policiais, após a escritora ser falsamente acusada de roubar dinheiro de um frei e de bruxaria por ler uma bíblia atribuída à São Cipriano.

Segundo uma reportagem da revista Marie Claire, Vera Eunice quer ceder o acervo a outras instituições que podem conservá-lo corretamente. Entre elas, o Instituto Moreira Salles (IMS), a Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro – que guardam parte do acervo de Carolina, armazenado corretamente –, e o Museu Afro Brasil, em São Paulo – que preserva o exemplar de Quarto de Despejo escrito em papéis de pão.


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