Testes genéticos podem prever a reação de cada pessoa a medicamentos

  • Cesar Colleti
  • Publicado em 6 de janeiro de 2019 às 12:37
  • Modificado em 8 de outubro de 2020 às 19:17
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A medicina personalizada está chegando sem fazer alarde e com resultados mais rápidos e eficazes

Muitas vezes, ao sair de uma
consulta médica com uma receita na mão, você se pergunta: “Será que são o
remédio certo e a dose adequada para mim?”. Pois já é possível saber antes de
tomar o primeiro comprimido – e com mais exatidão do que pelos métodos usuais, que
se baseiam em dados estatísticos de grandes estudos e na experiência do médico.

A resposta está nos genes.
São eles que coordenam a produção de enzimas necessárias para quebrar os
fármacos. Dependendo das particularidades individuais, a mesma dose de determinada
medicação, que não funciona para alguns, pode levar outros ao hospital.

A farmacogenômica,
ou farmacogenética,
identifica
as características genéticas para prever a reação da pessoa ao medicamento.
Mostra de antemão quem corre o risco de apresentar efeitos adversos graves a
fim de reduzir sua incidência e conseguir maior adesão ao tratamento. “A
medicina de precisão é uma oportunidade de tornar os tratamentos mais
individualizados e propensos a produzir bom resultado”, disse o geneticista
Francis Collins, diretor dos prestigiados Institutos Nacionais de Saúde dos
Estados Unidos, para a rede de televisão CBS.

A principal ferramenta da medicina
sob medida são os testes genéticos. “Eles permitem que se descubra o
medicamento adequado em tempo mais rápido, com maior eficiência, mais segurança
e menor custo”, esclarece Guido Boabaid May, psiquiatra do Hospital Israelita
Albert Einstein, em São Paulo, e fundador de uma startup dedicada à realização
de testes para doenças da mente. É o caso da depressão, que atinge mais de 300
milhões de pessoas no mundo e já constitui a maior causa de incapacidade física
e mental.

Graças às informações fornecidas
por esses testes, houve aumento de 50% na taxa de remissão de sintomas
psiquiátricos entre pacientes que antes não respondiam à medicação – de acordo
com um dos maiores e mais controlados estudos sobre a aplicação desses testes
em pacientes com doenças mentais, apresentado em maio no Congresso da
Associação Americana de Psiquiatria. Além disso, os resultados apareceram mais
depressa.

Segundo May, pelo método
tradicional, os médicos precisam esperar de três a seis semanas para observar
se um antidepressivo está provocando boa resposta – ou até 12 semanas se for
uma combinação de fármacos. O estudo, realizado sob a coordenação dos médicos
Sagar Parikh e John Greden, da Universidade de Michigan, nos Estados Unidos,
acompanhou 1 167 voluntários recrutados em 20 centros médicos.

Embora a bagagem genética seja um
dos fatores que influenciam a resposta ao medicamento – além de idade, estado
nutricional, condição de saúde e ambiente, que podem ser avaliados na consulta
–, durante muito tempo ela permaneceu inacessível. O termo farmacogenética foi
cunhado em 1959.

O campo, porém, só se desenvolveu
a partir dos anos 1980, especialmente depois de 2000, com a divulgação das
conclusões do Projeto Genoma Humano, consórcio internacional que consumiu uma
década de pesquisas e investimentos monumentais para mapear os 30 mil genes do
DNA humano.

Planos
de combate no DNA

Os testes genéticos procuram
marcadores no DNA, os chamados poliformismos de base única, locais onde ocorrem
variações que indicam como a pessoa reagirá a um fármaco: se terá uma resposta
benéfica (a desejada), neutra (o remédio não fará efeito) ou desfavorável
(haverá muitos efeitos colaterais).

Essa informação facilita a escolha
do medicamento e o ajuste da dose. O uso mais consagrado é para determinar a
indicação do anticoagulante oral varfarina na prevenção e tratamento da
trombose, formação de coágulos nas veias.

Como a dose terapêutica é próxima
da dose tóxica, capaz de ocasionar hemorragias graves, durante anos foi o
segundo medicamento a provocar mais idas ao pronto-socorro nos Estados Unidos.
O quadro mudou com a análise de variações nos genes CYP2C9 e VKORC1. “Ela ajuda
a estabelecer a dose de maior eficácia e menor risco de hemorragia”, explica
Guilherme Suarez Kurtz, professor de farmacologia da Universidade Federal do
Rio de Janeiro e pesquisador do Instituto Nacional do Câncer (Inca).

O teste também está bem
documentado para a codeína, analgésico potente da família dos opioides,
destinado ao alívio de dores moderadas. Cerca de 10% da população apresenta uma
variação no gene CYP2D6 que torna a metabolização do remédio mais lenta,
impedindo que produza o alívio desejado. Já outros 30% o metabolizam de maneira
tão rápida que até doses baixas podem ter efeitos tóxicos, como confusão mental
e sonolência extrema.

Outro teste avalia a possibilidade
de a sinvastatina, medicação mais empregada para controle do colesterol, causar
dores ou desgaste nos músculos. Conforme o resultado, recomenda-se dose menor
ou outra estatina. Pacientes HIV positivos também podem se beneficiar. Devido a
uma variação genética específica, de 5% a 10% deles estão predispostos a uma
reação de intolerância tão forte ao antirretroviral abacavir, integrante do
coquetel contra a aids, que os obriga a suspender o uso.

Na Austrália, é obrigatório
realizar o teste antes de prescrever o abacavir, avisa Kurtz. “Essa informação
pode ser decisiva para obter uma resposta terapêutica excepcional.” Os testes
são úteis, ainda, para quem vai tomar o anticonvulsivante carbamazepina, droga
mais receitada contra epilepsia. Em portadores de certa variação genética, ela
pode induzir a reações cutâneas gravíssimas, com formação de úlceras capazes de
infectar e até provocar a morte.

Na oncologia, testes genéticos
ajudam a traçar o plano de combate ao câncer. Nesse caso, o que se examina não
são as características herdadas dos familiares, mas os genes do próprio tumor
para estimar sua sensibilidade aos medicamentos e escolher alvos específicos. O
pioneiro desses agentes é o trastuzumabe, anticorpo que ataca uma proteína
produzida pelo gene Her2 positivo, presente entre 20% e 25% dos tumores de mama
e responsável por uma das formas mais agressivas da doença.

Já o imatinibe é recomendado para
tratar leucemia e outros tipos de câncer quando se encontram mutações nas
células malignas sugestivas de sensibilidade à droga. Esses medicamentos surtem
efeito apenas para as pessoas que se encaixam nesses perfis.

Enquanto em áreas como o câncer
alguns testes já estão incorporados na rotina de cuidados do paciente, em
outras a implantação acontece em ritmo mais lento do que o esperado em
decorrência de obstáculos, apontados por Guilherme Kurtz:

– Custo: é caro, em média R$ 4 mil
nos serviços privados e a maioria dos planos de saúde não reembolsa. A
tendência é que o preço caia à medida que forem se difundindo.

– Resistência do profissional: é
necessário convencer o médico de que essa ferramenta é segura e substitui o
método convencional de tentativa e erro.

Bagagem brasileira

Duas áreas em que as aplicações
têm crescido, inclusive no Brasil, são a neurologia e a psiquiatria. Os testes
realizados na startup criada por Guido May sequenciam 26 genes à procura de 506
variantes para 79 medicamentos contra depressão, transtorno bipolar, ansiedade,
insônia, fibromialgia, epilepsia, Alzheimer e Parkinson entre outras doenças.

“O gene MTHFR é responsável pela
codificação de uma enzima do fígado, de mesmo nome, que converte o ácido fólico
da dieta na sua forma ativa, o metilfolato, para ser utilizado pelo organismo”,
exemplifica May. “O ácido fólico é precursor de três neurotransmissores:
serotonina, dopamina e norepinefrina. Uma variante nesse gene reduz a atividade
dessa enzima, o que afeta a produção desses mensageiros químicos relacionados
ao humor. A pessoa com essa característica pode necessitar de suplementação com
metilfolato para responder melhor ao tratamento.”

A Rede Nacional de Farmacogenética
(Refargen) reúne desde 2003 pesquisadores do Brasil inteiro empenhados em
investigar e desenvolver terapêuticas individualizadas mais eficazes e menos
tóxicas para nossa população. “Algumas variações genéticas são comuns em povos
europeus, africanos ou ameríndios. A extrapolação desses dados não é apropriada
aos brasileiros porque somos heterogêneos e miscigenados.

Precisamos testar a frequência
dessas variações em pessoas de diversas regiões para determinar se o teste pode
ser útil aqui”, explica Kurtz, que coordena a Refargen. Por exemplo, uma delas,
associada a reações cutâneas graves à carbamazepina, é bastante comum no
Sudoeste da Ásia, mas pouco prevalente no Brasil. “Conhecendo bem as
características da população, podemos escolher que testes devemos implementar.”

Para Kurtz, mais interessante do
que fazer apenas testes voltados para medicamentos específicos, seria traçar um
painel genético individual cobrindo diversos genes, que valeria para a vida
inteira. As informações ficariam guardadas no nosso prontuário médico
eletrônico para serem consultadas sempre que necessário. Talvez esse seja o
próximo passo da medicina personalizada.


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