Saudável é a mãe

  • Língua Portuguesa
  • Publicado em 26 de março de 2018 às 08:10
  • Modificado em 8 de abril de 2021 às 14:20
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Já sei que tenho que comer comidas saudáveis, saladas, carnes brancas e magras para ter uma velhice plena. Também sei que tenho que fazer exercícios físicos regularmente, para chegar a uma velhice plena. O doutor de não sei que canal disse que o estresse atrapalha o desempenho intelectual de uma pessoa, precisa mudar, se ela quiser chegar a uma velhice plena. O outro doutor do outro canal, que não sei qual é, disse que beber água regularmente e usar limão ajuda a controlar o PH do estômago ou intestino, se quiser chegar a uma velhice plena. Há a série “House” em que um médico maluco contraria tudo o que se pode pensar sobre uma velhice sadia. Virou meu ídolo. Quero morrer de morte morrida.

Como não sigo nenhum desses conselhos, já me sinto um gordo compulsivo, um energúmeno em fase terminal, uma cópia das obras de Francis Bacon. Bacon é bom demais em um hambúrguer suculento. E falando em tempero, a cozinheira aqui de casa deve ter sido subornada por algum dos meus concorrentes, o tempero leva o comensal ao afogamento compulsório. Quase me afoguei várias vezes. Fui socorrido pela atitude intempestiva da minha sogra que levou o prato embora. Aproveitei e contratei uma policial experiente para evitar a gula: a minha sogra. Sogras servem para comer e não deixar comer. No entanto, já bolei um plano para matá-la: vou empanturrá-la com o bolo do lanche da tarde (ela amaaaa), mas antes vou pegar um mísero pedacinho para mim. É um desperdício que ela leve tudo para a cova.

São tantos os programas na tevê sobre a Medida Certa que ando agora com uma fita métrica, para medir o quanto a minha circunferência abdominal aumentou depois de uma meia dúzia de cervejas. Para os que acreditavam que cerveja não engorda, o doutor (sei lá quem) disse que engorda sim. Ele é um gordo cervejeiro debaixo daquele lençol largo, creio. Até convidou uma nutricionista para fazer um diagnóstico sobre a vida descontrolada dos beberrões que me deu arrepios: cada tulipa de chope corresponde a um pãozinho. No final do dia, tive a impressão de ter ingerido uma padaria inteira. Se vir acompanhada de um salaminho ou queijinho se torna mais perigosa ainda. É a morte. Esses embutidos têm alta concentração de sal, uma espécie de detonador para a pressão alta. Para piorar, o sal ajuda o organismo a reter os líquidos aumentando a circunferência abdominal que, acima de 80 cm, levará até adolescentes ao infarto, derrame, hemorroidas, desmaios, AVC e sei lá mais que doenças absurdas. Ela tem cara de ser uma daquelas supostas abstêmias puritanas que bebe escondida. Deve ser dura essa vida de nutricionista. Noutro dia, flagrei minha ex-nutricionista no cê-qui-serve com um prato que parecia o monte Evereste. Disse que era o dia do descanso na semana. Mas, ainda era quarta-feira!

Só na rede Globo, vemos a Ana Maria Braga e suas frases matinais de autoajuda, porém, contraditoriamente, ensina a fazer comida gordurosa; o Bem-estar, cujo apresentador é um quase gordo, tem sérias dificuldades para acompanhar Mariana Ferrão nos exercícios. Quase sempre parece pior que eu no calor de Ribeirão Preto: sua mais que tampa de panela. Ainda há o Zeca Camargo (ex-gordo, aproximando-se cada vez mais da perda, perda do EX no É de Casa), junto com a Ana Furtado (Olívia Palito) e a Patrícia Poeta, uma musa mais bela, quando era mais suculenta; o Fantástico lembra a todos, que aquela pizza domingueira será a causa mortis na segunda-feira. E, para piorar, entrevista um bando de gordos arrependidos que, em frente a uma câmera, faz sua mea culpa, por causa da gula. Escondidos no camarim, mergulham num hambúrguer, que só tem graça, se acompanhado de uma açucarada e mórbida Coca-Cola. Tenho certeza. Vou conversar com o Edir Macedo e fundar a Igreja do Gordo Arrependido. Faço um programa de entrevistas e bato a concorrência. Corro o risco de ficar em primeiro lugar em audiência, tamanho o público disposto a chorar, espernear e se amaldiçoar os Master-chefs da vida e as modelos esquálidas, talhadas para palitar dentes. Modelos Plus Size fazem parte de um longo engendrado processo velado de preconceito mercadológico. Miss Plus é um termo de dar engulhos.

O patrulhamento toma conta dos telejornais. O contrassenso é o da Band, em que a Ana Paula Padrão (padrão de magreza) apresenta um programa engordadivo. É uma grande sacada: o gordo emagrece de raiva com as comidas mal feitas. Isso sim é que é psicologia. Inclusive, Érick Jacquin, um dos jurados, que é gordo, reprova comida atrás de comida fazendo piadinhas. Isso sim emagrece. Fiquei sabendo, por um personal trainer, de uma tevê a cabo dessas, que perder peso é fácil, porém manter a silhueta de sílfide é uma guerra diária. Ainda bem que não me alistei. Vou me deliciar, se ele ficar estressado com os comilões, como fico no self service perto da minha casa, cuja cozinheira parece fazer parte de um complô internacional para levar pessoas rotundas para o cemitério. Desconfio, sinceramente, que ela é sócia do sujeito da funerária. O dono tem o carinhoso apelido de Neném, vive sorrindo. Acho que ele pensa assim: Mais um que vai virar comida de formiga. E haja formiga para dar conta desses viciados em picanha, lasanha, feijão tropeiro e feijoada. Desconfio também que ele é criador de formigas. Deve Pensar: Vou faturar com a comida, com as covas, os caixões e as formigas. Essa mistura insólita aparece todas as quartas-feiras no cardápio. E já vi um monte de gente dizer que não há nada mais gostoso que feijoada com toques de massa e um molhinho à bolonhesa.

Queria ver uma Patrícia Poeta, depois de umas dez aulas no turno da manhã, resistir ao cheirinho do pastelzinho que aquela maldita faz. Dentro de um estúdio amorfo, com um monte de gente policiando, fica fácil dar um monte de conselhos para as pessoas. Quero ver aqui fora, de frente para uma coxinha de frango com catupiry de Bueno, mais ou menos do tamanho de uma laranja, ou do Frango na Brasa do Tião, dentro daquela tevê de cachorro, cujo cheiro inunda a rua ficar fazendo cara de paisagem.

E os personal trainer da tevê, mais parecidos com exímios defuntos equilibrantes sobre as pernas, nos dizendo para ficarmos iguais a eles. Não há coisa tão chata e pouco saudável do que programas sobre vida saudável. Agora, vieram com outra: comida virou remédio para tudo, até para aumentar o desempenho sexual. Pensei sempre que sexo dependesse do desejo de se atracar um com o outro ou outros. Ainda bem que sou um grande leitor, grande em todos os sentidos. Você já viu ambulância em porta de biblioteca? Overdose de livros não mata ninguém. Em porta de academia, você já viu, tenho certeza. Overdose de anabolizantes mata e da busca do corpo “perfeito” também.

Num depoimento emocionante, um amigo se expôs em um vídeo filmado por um celular com o irmão segurando o aparelho a dois passos: “Minha mãe comia muitas frutas e verduras, aconselhada por amiga saudável. Apaixonou-se pelas carambolas. Sem saber, tinha graves problemas renais, perdeu a noção das coisas. Morreu saudável”.


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