Pesquisadores brasileiros criam pomada contra picada letal de aranha

  • Cesar Colleti
  • Publicado em 11 de dezembro de 2018 às 15:15
  • Modificado em 8 de outubro de 2020 às 19:13
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Cientistas do Instituto Butantan desenvolvem pomada contra picada que pode causar necrose de pele e até morte

Ela é pequena, com um tamanho que varia de 0,6mm a 2cm, mas pode causar
um estrago considerável.

Todos os anos, a aranha-marrom (Loxosceles sp) pica
cerca de sete mil pessoas no Brasil — 7.441, em 2016, último dado disponível do
Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan), do Ministério da
Saúde.

O veneno dela pode causar necrose da pele, falência renal e até a morte
das vítimas — seis, naquele ano.

Para diminuir esses problemas, cientistas do Instituto Butantan (IB)
desenvolveram uma pomada, cujos efeitos curativos já foram comprovados em
testes realizados em cultura celular e animais.

Segundo a pesquisadora do IB, Denise Tambourgi, principal responsável
pelo trabalho, a pomada desenvolvida é feita à base de tetraciclina, substância
conhecida e já usada como antibiótico. “Utilizamos numa concentração
abaixo da que seria microbicida, no entanto”, explica. “Ou seja,
menor do que a necessária para ser considerado antibiótico. Mas a empregamos em
uma dosagem capaz de interferir na atividade da esfingomielinase D, proteína
que é o componente principal do veneno da aranha e que está envolvida no
processo de inflamação e de destruição do tecido (necrose) e outros
efeitos.”

Além de lesão cutânea — que ocorre em 80% dos casos e pode levar meses
para ser curada —, a picada da Loxosceles também pode provocar, nos outros 20%
das vítimas, efeitos sistêmicos, como hemólise (alteração, dissolução ou
destruição dos glóbulos vermelhos do sangue), agregação plaquetária (que causa
coágulos nos vasos sanguíneos, que dificultam ou impedem a circulação),
inflamação e falência renal, que podem levar à morte.

Origem da pomada

A história das pesquisas de Denise que levaram à criação da pomada é
longa. Ela começou o trabalho para decifrar os principais componentes da toxina
da aranha-marrom em 1994. Para isso, ela e sua equipe lançaram mão da
engenharia genética.

Como cada Loxosceles produz muito pouco veneno — apenas cerca de 30
microgramas — seria muito difícil conseguir a quantidade necessária para os
estudos. Então, os pesquisadores inseriram um gene dela na bactéria Escherichia
coli, criando assim uma biofábrica da esfingomielinase D, passando a produzi-la
em volume suficiente para as pesquisas.

Ao longo do trabalho, Denise e sua equipem descobriram que o veneno da
aranha-marrom pode causar, além de efeitos já conhecidos, reações secundárias,
que são desencadeadas principalmente pela proteína esfingomielinase D. “Costumo dizer que o
veneno só dá o ‘start’ e a proteína altera as células”, explica.
“Depois, ocorre uma desregulação do organismo, que leva à produção de
proteases — enzimas cuja função é quebrar as ligações químicas de outras
proteínas, o que, por sua vez, causa a morte celular e a necrose. São essas
proteases, portanto, que devem ser inibidas pela pomada.”

Resumindo, o estudo coordenado por Denise decifrou o
mecanismo de ação do veneno lançado pela aranha-marrom e também a forma
sistêmica e cutânea da doença. 

Testando o antídoto na pele

Os primeiros testes, realizados em cultura de células de pele
humana, mais especificamente queratinócitos e fibroblastos, e em animais
começaram a ser feitos em 2005 e se estenderam até agosto de 2018.

“Realizamos
vários experimentos, aplicando o veneno da aranha-marrom nas culturas”,
explica Denise. “Como esperávamos, as células morriam. Depois, as expomos
à toxina e à tetraciclina, em várias dosagens, ao mesmo tempo. Constatamos,
então, que o veneno não era mais capaz de matar as células.”

Os
pesquisadores passaram, então, para o passo seguinte do trabalho, que foi o
teste em animais. “Os coelhos foram escolhidos por serem um bom modelo
para o estudo da necrose de pele causada pela toxina da Loxosceles”,
explica Denise. “A lesão deste animal é parecida com a que se forma no ser
humano. Injetamos o veneno na pele deles e depois de algumas horas começamos a
tratá-los com uma pomada que continha tetraciclina e lanolina. Esta última
entrou na composição porque é capaz de levar a droga para as camadas mais profundas
da pele.”

Os resultados foram
animadores. Nos coelhos tratados com tetraciclina, a lesão regrediu
rapidamente. “A pomada reduziu o tamanho da lesão em cerca de 80%”,
conta Denise. “Diante desses resultados, partimos para os testes clínicos
em seres humanos.”

Como a
tetraciclina é uma droga já testada para várias infecções e, por isso, usada
comercialmente, não é necessário passar pelas várias fases de ensaios exigidos
pelos protocolos de pesquisa para a liberação de medicamentos. Ela pode ser
testada diretamente em humanos. “Na verdade, estamos apenas dando uma nova
aplicação a esta substância”, diz a pesquisadora.

Essa
fase começou em outubro. Serão tratados no total 240 pacientes, 120 com a
pomada e 120 com placebo, de 61 hospitais de Santa Catarina, estado onde ocorre
o maior número de picadas e no qual Denise tem várias parcerias, inclusive com
a Universidade Federal de lá (UFSC), além de médicos, enfermeiros e
profissionais da área de farmácia e de saúde. Até o momento, 20 pacientes já
estão sendo tratados.

Aqueles
que recebem placebo não ficarão sem tratamento. Eles receberão o que é usado
hoje para a picada, que é o soro específico antiveneno da aranha-marrom ou um
inespecífico, contra toxinas de aracnídeos em geral. As picadas também podem ser
tratadas com medicamentos chamados corticosteróides, mais conhecidos com
corticóides.

Se os
resultados dos testes clínicos forem os esperados, a pomada poderá chegar às
farmácias. Mas não há prazo para isso. Depois de aprovada nos ensaios, ela
ainda precisa ser liberada para uso em uso em humanos e comercialização pela
Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Se e quando isso ocorrer,
seu mercado poderá ser maior que apenas o do Brasil.

Além de
acidentes com Loxosceles nas Américas do Sul, Central e do Norte, nos últimos
anos, ocorreram também picadas na Europa, com relatos de casos em países como
Espanha, França, Portugal e Itália — este chegou a registrar um caso de morte.


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