NAU DOS INSENSATOS

  • Língua Portuguesa
  • Publicado em 11 de julho de 2019 às 20:09
  • Modificado em 8 de abril de 2021 às 14:20
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(O BOCA DO INFERNO – DIRETO DO MAR EMPANTURRADO)

Nesta fria tarde de julho de Ribeirão Preto, navega uma jangada repleta de corpos empilhados sob um céu tempestuoso bem na minha frente. É possível sentir o fedor da morte e a dor dos que agonizam. É possível imaginar os urubus. “A Balsa da Medusa”, naufragada nas costas da Mauritânia, é a obsessão de Théodore Géricault, que chegou a entrevistar e pintar os míseros e minguados sobreviventes. Assim são as revoluções: os artistas pintam os corpos empilhados, o sofrimento como praga e a esperança indigesta, antropófaga. Os poetas criarão lendas, os trovadores as cantarão, os historiadores se perderão.

A tarde convidava a uma bela taça de Romanée Conti, minha obsessão, justamente por ter o gosto oposto ao das invasões: aromas e sabores florais, manteiga, frutas vermelhas, terra fértil. Do útero da terra de Vosne-Romanée, brotam as uvas pinot noir que tintam a terra de vermelho, adubando o chão. O Romanée-Conti é considerado o grand cru da Borgonha pela sua elegância. A região ostenta o título de Apelação de Origem Controlada. A única empresa que detém o direito de explorar essa riqueza, chama-se Domaine de la Romanée-Conti. Domaine significa produtor: o que fertiliza a terra.

A “Balsa da Medusa” coalhou o mar de vermelho. O mar tem fome. Fome de gente. Fome de almas. Mesmo com tanta água, aventureiros, idealistas, sonhadores e conquistadores morreram de sede. Ironicamente, mesmo com tanta comida ao alcance das varas, morreram de fome. Não tiveram um lote na terra esturricada pelo sol do Senegal, mas tiveram seu quinhão de água salgada, por culpa das tempestades. Somente o rei pode explorar a terra e a água. O rei não é produtor, é executor. A fragata naufragava, enquanto o rei tomava seu cálice de vinho com sabor de frutas e terra fresca.

A utopia da França escravagista sufocou o ódio de tribos inimigas figadais há séculos, debaixo de chibata, canhões e espada. Deu o nome a esse lugar irreconhecível de Senegal. A África escravizada, mal amada, maltrapilha, estuprada pelos brancos patrões, repleta de “maus” costumes pagãos, virou pesadelo distópico para a grande potência ignorante. As tribos não falavam a mesma língua, não compartilhavam dos mesmos deuses, não se reconheciam sob a batuta de um maestro que criou um réquiem apelidado de Senegal.

Assim são as revoluções. Inimigos não têm idade, não têm raízes, não têm alma, só têm corpo, mas têm riquezas. A tortura machuca o corpo, a alma, a razão, a identidade em busca de enriquecimento.  

Aos dominados, sobra a humilhação, os restos e a podridão. O Papa legitimou a escravidão, as potências legitimaram as invasões, as delações e as destruições. O sol esturricou o solo, o francês com o mosquetão tingiu o solo estéril de vermelho, os urubus comeram as carnes, as carcaças não apodreceram, não adubaram o chão. Os deuses dos negros não se irmanaram com o deus branco, no entanto ambos são vingativos. Deuses não têm cara, mas seus seguidores têm armas fanatismo e nenhuma piedade, nem coração. E como se mata em nome de deus!!!!

A fragata Medusa soçobrou. O capitão inconsequente foi acusado de incompetente, inexperiente, mas seria nomeado intendente das terras que os enganados habitariam. Mas era nobre. Mas era obcecado pela fama. Ao peso de tantos mortos, o rei soçobrou. Os incompetentes nomeados viram marionetes dos abastados e os sonhadores insensatos, crendo-se ungidos por deus, como carneirinhos, não carregam nenhum juízo, carregando os herdeiros das tragédias. Assim são as revoluções. O povo nunca esteve no poder e nunca estará. Os incultos, propositalmente, só conhecem uma migalha da história. Nunca houve a verdade. O povo nunca tem a consciência dos seus destinos, enquanto os poderosos se regozijam com taças e mais taças de Romanée-Conti. Interessado leitor que chegou até aqui no final deste arrazoado, não fui convidado para o banquete. Como eu, você sonhará com uma taça de um dos vinhos mais caros do mundo que só os beiços dos ricos consegue encontrar. Você está na balsa da medusa, como tripulante. Você só não sabe e nem saberá do momento em que ele vai encalhar e soçobrar. Iludido, a bordo de um dedo, você apertará o botão que, como um passe de mágica, fará tudo mudar.


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