Eta!Mundão sem porteira

  • Língua Portuguesa
  • Publicado em 29 de dezembro de 2018 às 11:18
  • Modificado em 8 de abril de 2021 às 14:20
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(O Boca do Inferno – preso no mata burro)

É filosofia do caboclo mineiro: Esse mundão então não tem porteira, não tem paredes, não tem cerca não. Ledo engano. A gente se engana. Gente se engana sempre. Talvez, inspirado nesta filosofia, Guimarães Rosa tenha escrito a magnitude explicativa enigmática “O sertão é o mundo”. Esse mundão em que, se eu me chamasse Raimundo, não seria nem rima, muito menos solução. 
Guimarães não se esqueceu das veredas desse grande sertão. Pôs nele Diógenes, discípulo do cão, e pôs Diadorim ora homem, ora mulher, os dois num só, o que desperta paixão. 
Riobaldo, protagonista das Veredas desse grande sertão, mundo cão, rabiscou: “As pessoas ainda não estão terminadas, afinam e desafinam”. Protagonistas de um duelo que por paixão começa, mas não termina não. Há crime, azar, medo, covardia, sina, epifania, não há compaixão.
Nesse mundão, todo mundo tem a sua hora e a sua vez e a sua vai chegar, né mesmo? Mesmo. A existência é epopeia: amor de um; desejo de outro; beleza na morte; tristeza na vida. Destino desatinado que não admite comiseração, mesmo que Augusto arrependido o mal traga. Morra Diadorim de bala e Riobaldo de recordação. Sempre haverá Veredas, encruzilhadas, um velho cego e um cão sarnento que teremos que abraçar ou abandonar, sempre haverá um Diadorim, que parece uma coisa e é tantas outras, cegueira ou visão ou demência ou ilusão ou tudo assim ou assim não. Mundão, quase humano, desumano, ilusório de Rodapião.
Jumento não é gente, não tem ilusão, nem paixão, por isso, na sua filosofia, para antes do mata burro, todo dia, pra não ficar preso, indefeso, não atravessa córrego que vira rio, que tem fome de vida, fome de gente, de corpo ainda quente, que tinha achava que tinha que resolver consigo algo tolo, que considerou urgente.
As pessoas, que nunca estarão terminadas, dão a volta no mata burro, abrem a porteira, pulam dentro do rio, a existência é extravio, dentro da corredeira, a vida é correria, se pudesse o tempo morderia e, com a juventude eterna ficaria. Gente não tem medo da vida não. Quer se terminar, atravessando de canoa, para no outro lado desembarcar e assim desembestar a se procurar, sem nunca se achar.
Esse mundão tem paredes que se vê e outras que estão escondidas num senão, tem cerca de arame farpado, o destino traçado. Isso é verdade como dois e dois são cinco, a curva é um vinco na filosofia de todo dia. Farpa entra na carne e dói que nem saudade. Quem passa por cima se arranha, quem se arrasta por baixo sai arranhado. Não tem fuga não, de vez em quando tem um tiquinho de felicidade.
Burro que não é burro não encosta em cerca em dia de chuva não. Raio é chicote que mata com chuva forte. Chuva engole os que sobram e os que soçobram, mesmo dentro da moradia, carrega no lombo o que queria e o que não queria. A morte também finca moradia. 
Boi bravo arrebenta cerca. Não tem medo. ou tem? Boi bandido não encosta na cerca quando a chuva vem. O raio é relho, farpa, marimbondo na ponta da vara, a vida encara, desmascara, desce no lombo, provocando tombo, fere, o destino digere, cria agonia. Raio relho não extravia. Boi bravo é pego e logo sacrificado. Boi esperto conhece de perto o dito popular “Na dificuldade, sapo aprende a pular”, tanto que anda de um lado pra outro resignado. Anda, anda, sempre anda, para não engordar. Preferível rodar no mutirão ou ficar arrastando carroção. Morrer de velhice, comer sem virar comida, assim é a lida. Bois, que ficam juntos, morrem juntos, já foram engordados para engordar gente. Esse mundão tem paredes sim, tem porteiras sim e principalmente boca, boca de gente. Essa é a vereda de gado, sem escolha, sem paixão, esperando apenas a anunciação. Apenas um grito, um barrete, um porrete, sem perdão.
De dente em dente, o boi é triturado pela gente e, devagar o boi tritura gente também, mas gente não sabe disso não. Gente só quer se abastecer de morte para ficar vivo. Não importa a vivência, mesmo que desvivida. O mundo é toada, parece cantiga de ninar. Soa como canto de sereia em luar.
O dono da fazenda sabe como fazer tudo andar e tudo parar, ele tem a sela e o relho, o mata burro, a carroça, o carroção e o dinheiro que compra ilusão. Realmente “Viver é muito perigoso”. Né mesmo, Rodapião?


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