​EFEITO WERTHER: A REVOLUÇÃO DO NADA

  • Língua Portuguesa
  • Publicado em 17 de julho de 2019 às 20:22
  • Modificado em 8 de abril de 2021 às 14:20
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(O BOCA DO INFERNO – DIRETO DE UMA ESTÁTUA DA LIBERDADE)

Nesta fria tarde de domingo, vasculho uma obra arrepiante do Romantismo francês, “A liberdade guinando o povo” de Eugène Delacroix. A liberdade, no centro da tela, parece prestes a pular para fora da cena. O frio torturante convida a uma taça de um “Grand Crus” da região de Bordeaux, impiedosamente invadida pelos cães nazistas durante a Segunda Guerra Mundial. A obra expõe as vísceras do idiotizado mundo pequeno burguês, que se acredita predestinado a ser, um dia, burguês.
A Liberdade panfletária está representada por uma bela mulher de seios fartos. Um à mostra; o outro semicoberto. O sensual escancarado amamenta a sede de ilusões; o semicoberto camufla certeiras intenções. O bico desnudo fere despudoradamente a moral; o bico mal disfarçado abriga a hipocrisia do pudor. Assim é a liberdade. Nua da cintura para cima; vestida da cintura para baixo. Da cintura para cima, alimenta sensações, desejos, ilusões; da cintura para baixo, sonega, desalenta, acoberta ilusões. Ora ambígua, ora intempestiva, ora engana, ora desengana. Veste-se como uma “misérrima deusa grega”, entre Atena e Medusa, Hera e Afrodite. Leva aos devaneios de Baco os idealistas, ao inferno de Hades os oponentes. Assim é a liberdade. Antes acorrenta, de escapar. Antes fanatiza, para ficar.
Assim são as revoluções. Impassível, arrogantemente pacífica, a Liberdade segura a bandeira francesa em uma das mãos; um mosquetão, uma baioneta na outra. O cano cospe a morte aos borbotões; a baioneta espeta opositores como porcos, empilha cadáveres no chão coalhado de sangue. Para conquistá-la, é preciso pisotear, engolir a sorte, cuspir a morte, ora com asco, ora com gosto. Assim é a liberdade. Pisa corpos, seguida por sôfregos jovens idealistas e calejados adultos furiosos em seu nome.
Assim são as revoluções. Aos pés da dita Liberdade, um homem a olha suplicante esperando que ela se compadeça dele. Impiedosa, ignora-o. O rosto é pura soberba expelindo o caldo de emoções, é irmã xifópaga do Caos. Seus olhos desertam da luta, miram a História, filha das horas, da ação dos homens, degustando as vísceras da vitória sangrenta. Assim é a liberdade. A farsa. Não é ela que luta, os idiotas, os corvos, as meias verdades, os idealistas é que lutam para serem donatários dela, que jamais se submete a nada, nem a ninguém. Sempre insatisfeita. Sempre antropófaga.
Delacroix pinta a tempestade cobrindo o Céu raivoso comendo a genitália de Gaia desafeta da sua sede de orgasmos. Assim são as revoluções. Libertè, Igualitè, Fraternitè: suprema ironia. Saturno corta o pênis de Urano (céu inclemente) em nome do próprio furor. A burguesa arrasta o povo bucha de canhão para uma guerra em que há apenas um futuro, só haverá um vencedor: ela, com sua sede de orgasmos. Os urubus se empanturram de carniça. Um revolucionário não passa disso, um cadáver insepulto, não um titã. Titã come seus filhos como Saturno o fez. Assim são as revoluções burguesas. Cria titãs ao invés de deuses. Ao invés de luz, escuridão. Raios machucam Gaia, a vingança turva a visão. 
O pintor pensou em tudo isso, me perguntam? Sei lá; eu sim. Há infinitas interpretações convenientes para a liberdade e as revoluções. A minha é esta. Hipocrisia, mãe da revolução burguesa, se banha com o poder da vitória. O lucro mata com mosquetão; a desigualdade corta com faca. Os cegos, que derrubaram o castelo, suicidaram-se, ao se tornaram tardiamente reféns da percepção, bêbados com a farsa do poder. Sobrou o suicídio, como alternativa. A ansiedade e a depressão, como sintomas do real atropelado pela ambição. O que ama burguesia? O dinheiro. Quem ama o burguês? O arrivista. O que a burguesia pode comprar? O poder. Até mesmo a dignidade e a amizade. A arma do burguês? A guilhotina. Cada homem tem um preço, diz o burguês, corrompendo com a promessa de um novo status quo. A vaidade do pequeno burguês colabora. 
A burguesia compra paliativos para as dores do físico, da alma e do coração. Comprimida se entope de comprimidos para entontecer a razão. Cura corpos, mas sofre de frustração. O suicídio, arma da solidão do agora, da ansiedade pela rapidez de um futuro próspero, da depressão por causa de um passado inapetente, é a desrazão. Efeito Werther? Assim são as revoluções. Externas afligem as internas. Os sofrimentos do jovem Werther contaminam como praga. O burguês não aprendeu a sofrer com sua criação: Libertè, Igualitè, Fraternitè. Não consegue conviver com sua hipocrisia.
Nunca houve uma revolução popular. Pergunte à história? O povo nunca esteve no poder, observe a pintura de Delacroix. Enraízam-se no poder os espertos, os acumuladores, os possuidores, os que se impõem pela razão sem nenhuma razão. Os que dominam, os que criam crises para ganhar. Os donos do pó. Os donos do cimento. Os que transformam carnes em adubos. Os que carregam os cegos sem lhes dar a bengala, muito menos a mão. Os que vendem caixões, os generais. Enfim, quem tem dinheiro, como matéria prima. Nunca os soldados, os carpinteiros, os sabedores, os professores. Protestar sem fazer não é arma contrarrevolucionária. Vaias são a covardia dos iludidos e arrependidos. Se estamos no mundo da pós-verdade, para piorar vem aí o mundo da pós-realidade. A revolução através da vaia virtual. Uma oração não compra um perdão: sentenciou a lúgubre obra do pintor poeta. A tarde continua fria. O sol não esquenta o corpo nem a alma. Nossa própria alienação vê apenas uma bela estátua, incapaz de nos ajudar. Não há um “grand cru”, há só desejo e paladar; há olhos sim para degustar e se perder nos meandros da obra Delacroix, com a liberdade prestes a saltar do meio da cena para nos embriaga


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