BARQUINHOS DE PAPEL

  • EntreTantos
  • Publicado em 19 de novembro de 2018 às 16:46
  • Modificado em 8 de abril de 2021 às 14:27
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Não percebemos, mas, ainda ontem, estávamos brincando na chuva, navegando enxurradas em barquinhos de papel, sem leme, bussola ou âncora. Temendo os trovões impetuosos é fato, mas, encorajados com a certeza de que não se pode perder tão magnifico espetáculo.

Ontem mesmo, conversávamos na calçada de um amigo, fantasiando milhares de situações da vida adulta, enquanto o dia se tingia de negro e a noite nos surpreendia. Situações onde teríamos aquela mesma liberdade, que nos permitia tolices.

Éramos destemidos cavaleiros empunhando espadas, salvando lindas donzelas, desafiando monstros imaginários que faria tremer o próprio Dom Quixote.

De lápis em punho, modelávamos um mundo maravilhoso, resplandecido num Éden verde e azul, convidando a viver.

Ontem achávamos o hoje incrivelmente distante que, de repente, talvez sequer nos chegasse, correndo o risco de se dissipar durante o longo percurso.

Mas, tal qual os grãos de areia fugindo por entre os dedos, o hoje nos chegou. Com ele, a materialização de monstros que jamais imaginamos combater. Monstros semelhantes a nós, criados e alimentados por nós. Monstros que conhecem nossas fragilidades, sabem que abolimos nossas espadas e o ar de herói. Aliás, ficamos tão parecidos com os tantos monstros que desenhamos que, por vezes, é bem difícil distinguir-nos. Nos tornamos o adulto que complica, que não vê graça, que tudo sabe e nada ensina. Somos o tipo de gente que sabe palestrar com conteúdo, qualquer filosofia da evolução humana, compreende o mecanismo de translação que faz a terra girar, mas, lamentavelmente, não compreende o complexo prazer que um carrossel pode proporcionar. Não compreende que é na simplicidade que estão as coisas mais sofisticada. Não entende que o substancial não se compra.

O que houve com a gente?

Para onde foram nossos sorrisos?

Afinal, em que momento, nos tornamos a “vizinha chata” que nunca devolvia a bola?

Ainda ontem, tínhamos milhares de medos e não éramos reféns deles. Sabíamos que nem sempre o sol brilharia, que às vezes, a chuva tingiria o dia de cinza, mas, aproveitaríamos da mesma forma. Sabíamos reconhecer a importância do nosso e do riso alheio.

Hoje somos folhas mortas, secando gradativamente na calçada deste longo percurso, quebradas sob os pés.

Éramos o dia azulado e hoje somos a noite que o escureceu integralmente.

Se há ainda, alguma coisa que carregamos de nossa infância, na pouca bagagem para a vida adulta, sem dúvidas, é a capacidade de interpretar vários personagens. Trouxemos milhares de máscaras, seguindo a sugestão que alguém falou para alguém, de que são extremamente necessárias na vida adulta. O fato é que nossas mascaras refletem opiniões, estereótipos e até a aparência deste mundo, só não reflete nossa alma, onde uma criança aprisionada grita desesperada, por retornar ao mundo.

Somos aquele barquinho de papel, que ninguém viu para onde foi. Desaguamos num mar de possibilidades, onde dissolvemos tanto, que nos tornamos a própria agua salgada.

E se, por acaso, algum dia você, amado paciente leitor, se surpreender sorrindo abobalhado de uma idiotice qualquer, para qual nenhum adulto parece demonstrar qualquer importância. Ou se, no meio do alarido do trânsito, um balanço solitário, uma árvore pendida sobre um muro ou mesmo um barquinho de papel, ondulando mansamente sobre enxurradas, lhe seduzir, não se preocupe, lhe asseguro de que não estás louco, é apenas alguns sobressaltos da criança aprisionada rogando pela vida. E talvez, você nem se lembre, mas, um dia, estas pequenas coisas, aparentemente insignificantes, foram extremamente valiosas em sua vida.

“A criança que um dia fui. É o adulto que eu queria ser.”

*Essa coluna é semanal e atualizada às quartas-feiras.


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