Alguns aspectos relevantes sobre o crime de tráfico de pessoas

  • Cesar Colleti
  • Publicado em 21 de dezembro de 2017 às 10:24
  • Modificado em 8 de outubro de 2020 às 18:29
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Professor da Unesp de Franca escreve sobre a vulnerabilidade das vítimas de tráfico de pessoas no mundo todo

Texto de Paulo César Corrêa Borges[1]

A realidade brasileira e de toda a América Latina revela um grande contingente de pessoas vivendo abaixo da linha da pobreza e expostas a diferentes formas de exploração, destacando-se a laboral e a sexual, além da exposição a diferentes formas de violência e de violação de diversos direitos humanos fundamentais.

Nos últimos anos, diferentes crises aumentaram a grave situação de vulnerabilidade social das pessoas, particularmente das mais pobres, ampliando os riscos de exploração e violação de direitos. Neste sentido, destaca-se que, segundo o relatório “Síntese dos Indicadores Sociais – 2017”, no Brasil, “(…) a taxa de desocupação da população em geral subiu de 6,8%, em 2014, para 11,3%, em 2016”.  Além disso, a análise da referida pesquisa permitiu concluir a maior vulnerabilidade dos jovens menos qualificados: “45,8% dos jovens de 18 a 24 anos e 39,2% dos jovens de 25 a 29 anos com no máximo o ensino fundamental incompleto não estudavam nem estavam ocupados”[2].

É diante dessa conjuntura que se busca identificar os impactos da vulnerabilidade das pessoas na exposição aos riscos do tráfico interno e internacional, para fins de exploração sexual e laboral, que constitui-se em forma contemporânea de escravidão[3], em pleno Século XXI, temática que preocupa diversos organismos nacionais e internacionais (ONU, OIT, OIM etc.), e que tem fomentado diversas pesquisa em redes das quais o Programa de Pós-graduação em Direito da Unesp (PPGDIREITO/UNESP/FRANCA) participa, tais como a Red Iberoamericana de investigación sobre formas contemporáneas de esclavitud y Derechos Humanos[4]; Grupo de Pesquisa Trabalho Escravo Contemporâneo[5]; em certa medida, com enfoque na relação de empresas transnacionais e direitos humanos, o Consórcio Latino-Americano de Pós-Graduação em Direitos Humanos[6]; e o Núcleo de Estudos da Tutela Penal e Educação em DDHH[7], liderado pela UNESP.

A partir da análise das alterações legislativas dos países da União de Nações Sul-Americanas – UNASUL, implementadas para adequação ao Protocolo de Palermo[8], que é de 2000 e entrou em vigor no Brasil através do Decreto n. 5.017, de 12 de março de 2004, dois aspectos relevantíssimo ganharam o centro dos debates jurídicos e multidisciplinares concernentes ao consentimento e ao abuso da situação de vulnerabilidade em relação ao tráfico de pessoas, por vezes caracterizando o denominado “dumping social”, na cadeia produtiva, por meio das terceirizações feitas por empresas, inclusive transnacionais.

O CONSENTIMENTO NO TRÁFICO DE PESSOAS PARA FINS DE TRABALHO ESCRAVO E EXPLORAÇÃO SEXUAL.

No Protocolo de Palermo, o crime de tráfico de pessoas se caracteriza e o consentimento da vítima é irrelevante apenas quando obtido por meio de ameaça, violência física ou moral, sequestro, fraude, engano, abuso de autoridade, abuso de vulnerabilidade ou pagamento, bem como é, absolutamente, desconsiderado o consentimento em relação aos menores de dezoito anos, que nos documentos internacionais é o marco etário normativo para a caracterização de “criança”.

Na legislação penal dos países da América do Sul, constata-se que apenas o Brasil, o Chile e o Perú incorporaram a relevância do consentimento para a descaracterização do crime de tráfico de pessoas, quando ausentes aqueles meios violentos ou fraudulentos de sua obtenção. Para os demais países da Unasul, o consentimento é irrelevante e os meios ilícitos para sua obtenção ou agravam a pena ou são qualificadoras[9], repercutindo na majoração da pena a ser aplicada.

A atualização da legislação penal brasileira é recente[10] e ocorreu através da Lei n. 13.344, de 6 de outubro de 2016, inclusive implicando no reconhecimento da sua retroatividade benéfica aos casos de condenações anteriores, em que foi reputada irrelevante a presença do consentimento da vítima, caracterizando-se o que em Direito denomina-se “abolitio criminis”[11].

Embora esse tipo de criminalidade seja permeado pela clandestinidade e, por vezes, no caso de trabalho em condições análogas à de escravo ou exploração sexual, possa estar presente um aparente consentimento da vítima, os números oficiais são expressivos.

Segundo levantamento feito pela Câmara Criminal do Ministério Público Federal, em 2017, estão em andamento 225 casos de tráfico de pessoas, com 15 condenações (8 em primeira instância e 7 em segunda instância), assim distribuídos: 78 ações penais na primeira instância da Justiça Federal; 29 ações penais, na segunda instância (Tribunais Regionais Federais – TRFs); 97 inquéritos policiais; e, 21 procedimentos investigatórios conduzidos pelo próprio MPF[12].

DESAFIOS ATUAIS PARA A EXECUÇÃO DA POLÍTICA CRIMINAL.

No III CONGRESO JURÍDICO INTERNACIONAL SOBRE FORMAS CONTEMPORÁNEAS DE ESCLAVITUD, realizado em Lima/Peru, de 20 a 21 de novembro de 2017, com a participação de membros do Ministério Público do Peru e de pesquisadores ibero-americanos e especialistas em tráfico de pessoas para diferentes fins de exploração, mas principalmente sexual e laboral, dentre os desafios atuais, foi destacada a dificuldade existente em comprovar nos processos criminais o que as legislações penais indicam como “abuso de vulnerabilidade”, como hipótese de exclusão da validade do consentimento da vítima, principalmente em relação aos três países que já se adaptaram ao Protocolo de Palermo: Brasil, Perú e Chile.

Outro desafio apresentado a partir das pesquisas realizadas na Unesp, referiu-se à relação da terceirização na cadeia produtiva da indústria têxtil e da mineração com o trabalho escravo, caracterizando em alguns casos já julgados[13] pela Justiça do Trabalho até mesmo o dumping social[14].

É urgente a disseminação de uma cultura corporativa que previna tais situações violadoras de direitos humanos fundamentais, inclusive por meio de uma política de compliance e, no caso de empresas transnacionais, através da implementação dos denominados Princípios de John Rudggie, que foram aprovados pela O.N.U. como Principios Rectores sobre las empresas y los derechos humanos: puesta en práctica del marco de las Naciones Unidas para “proteger, respetar y remediar”[15].

Por certo, não será efetiva a política criminal para enfrentamento do tráfico de pessoas, por meio de atos administrativos infra-legais e inconstitucionais, como se pretendeu através da Portaria n. 1.129, de 13 de outubro de 2017, restringir o conceito de trabalho escravo à restrição da liberdade de ir e vir da vítima[16], em afronta às Convenções 29 e 105, da O.I.T., à dignidade da pessoa humana e aos valores sociais do trabalho, previstos como fundamento da República Federativa do Brasil, além de ignorar os objetivos fundamentais do país na construção de uma sociedade livre, justa e solidária, para alcançar o desenvolvimento nacional, erradicar a pobreza e a marginalização, reduzir as desigualdades sociais e promover o bem de todos, como expressamente está previsto no artigo 1o., incisos III e IV, e no artigo 3o., inciso I, II, III e IV, ambos da Constituição Federal.

Tanto é assim que, em decisão liminar da Ministra Rosa Weber[17], o Supremo Tribunal Federal suspendeu aquela portaria, em 23 de outubro de 2017, e o Ministério Público Federal propôs ação de improbidade administrativa[18], em 06 de dezembro de 2017, em face do Ministro do Trabalho por omissão deliberada e pelo desmonte da política pública de erradicação do trabalho escravo.

 [1] Mestre e Doutor em Direito pela UNESP, com Pós-doutoramento na Universidad de Sevilla. Professor Assistente-doutor de Direito Penal na UNESP (F.C.H.S., Campus de Franca); Coordenador do NETPDH; Presidente da Comissão Permanente de Pesquisa da F.C.H.S.; membro do Conselho do PPGDIREITO e da CCPG da UNESP.

[2] IBGE. Si?ntese de indicadores sociais: Uma análise das condições de vida da população brasileira. Rio de Janeiro, 2017. (Estudos & Pesquisas: Informação Demográfica e socioeconômica, vol. 37). Disponível em: . Acesso em: 16 dez. 2017.

[3] BORGES, Paulo César Corrêa. La trata de personas como oexpresión de formas contemporâneas de esclavitud em América del Sur. In: El derecho ante las formas contemporáneas de esclavitud. 1 ed. Madrid/España : Tirant Lo Blanch Editorial, 2017, v.1, p. 369-398.

[4] Vejam-se maiores detalhes em .. A RIIFCEDH é liderada pela Universidad de Granada/Espanha e foi criada sob os auspícios da la Asociación Universitaria Iberoamericana de Posgrado (AUIP), a partir do Proyecto de Investigación del Plan Nacional DER2011-25796: “El Derecho ante las formas contemporáneas de esclavitud”.

[5] Vejam-se maiores detalhes em . ou em .. O GPTEC é liderado pela UFRJ.

[6] Vejam-se maiores detalhes em .. O CLAPGDH é liderado pela Universidade Federal do Pará e conta com o apoio da Fundação Ford.

[7] Vejam-se detalhes em . ou .

[8] BRASIL. Decreto-lei n. 5.017, de 12 de março de 2004: Promulga o Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional Relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em Especial Mulheres e Crianças. Disponível em: . Acesso em: 17 dez. 2017.

[9] BORGES, Paulo César Corrêa. Panorama da legislação de combate ao trabalho escravo na América do Sul. IN: BORGES, P.C.C. (org.). Formas contemporâneas de trabalho escravo. São Paulo : NETPDH; Cultura Acadêmica Editora, 2015. (Série “Tutela penal dos direitos humanos), n. 4.

[10] BRASIL. Lei n. 13.344, de 6 de outubro de 2016: Dispõe sobre prevenção e repressão ao tráfico interno e internacional de pessoas e sobre medidas de atenção às vítimas. Disponível em: . Acesso em: 15 dez. 2017.

[11] Neste sentido é o Acórdão do T.R.F. da 3a. Região: Apelação criminal n. 0003784-95.2010.4.03.6181/SP, julgado em 25 set. 2017.

[12] BRASIL TEM 225 casos de tráfico de pessoas sendo investigados, aponta MPF: Vítimas têm como destino atividades como exploração sexual e trabalho forçado. O Globo, 25 jul. 2017. Disponível em: . Acesso em 17 dez. 2017.

[13] Veja-se a íntegra de sentença da 3a Vara do Trabalho de São Paulo, no Caso Zara, em . Acessado em 16 dez. 2017.

[14] BORGES, Paulo César Corrêa; ARRUDA, Amanda Amorim. A relação do trabalho escravo com o dumping social, na cadeia produtiva: a estratégia da terceirização. Revista da Associação Brasileira de Advogados Trabalhistas – ABRAT, ano 1, n. 1, 191-207, jan./dez. 2017, Belo Horizonte, Fórum, 2017.

[15] Aprovado pela O.N.U.,  A/HRC/17/31, disponível em Disponível em: . Acesso em: 15 dez. 2017.

[16] BRASIL. Ministério do Trabalho. Portaria n. 1.129 de 13 de outubro de 2017: Dispõe sobre os conceitos de trabalho forçado, jornada exaustiva e condições análogas à de escravo para fins de concessão de seguro-desemprego ao trabalhador que vier a ser resgatado em fiscalização do Ministério do Trabalho, nos termos do artigo 2-C da Lei n 7998, de 11 de janeiro de 1990; bem como altera dispositivos da PIMTPS/MMIRDH Nº 4, de 11 de maio de 2016. Disponível em . Acesso em: 13 dez. 2017.

[17] A íntegra da decisão monocrática na ADPF n. 489-MC/DF está disponível em . Acesso em 14 dez. 2017.

[18] A íntegra da inicial da ação de improbidade administrative está disponível em . Acesso em 18 dez. 2017.


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