A morte do “s” no final de tudo

  • Língua Portuguesa
  • Publicado em 30 de junho de 2019 às 18:43
  • Modificado em 8 de abril de 2021 às 14:20
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Um “agroboy” espremido em uma calça jeans hiper-super apertada do tornozelo à cintura. Dúvida cruel: Como ele conseguiu se enfiar nela? Claro! passou vaselina no cós e pulou do guarda-roupa para se encaixar? Caminhou soberbo como um pavão em direção à mesa. Piadistas cochicharam: “Esse aí usa calça zero a zero pra se mostrar fodão”. Portava um boné todo desgrenhado de uma famosa marca de agrotóxicos encrustado na cabeça. Vinha enlaçado por um largo sinto bandejão, que certamente o enforcava pela cintura. Dúvida cruel: “Será que dá para fritar um ovo naquilo?” Pisava ritmado com suas botas desgastadas, como se tocasse bumbo. Jogou a chave de uma caminhonete sobre a mesa. Olhou para as bocas em volta, só faltavam babar: “fodão”. “Consegui. cogitou com suas lombrigas”. O barulho, como os trovões, tinha a função de descaradamente demonstrar “phoder”. Puxou a cadeira, como se puxasse as rédeas de um cavalo. Várias senhoras o olhavam de rabo de olho.

Uma mocinha de tranças, enjaulada em uma calça jeans hiper-super justa, vinha à distância de um comando. Ah! Se as feministas radicais, que protestavam em frente ao Pedro II contra a “coisificação” e “opressão” do mundo machista vissem isso? Seria o caos. O jeans modelava suas formas. Piadistas, na mesa ao lado, elucubraram que o narrador de O Cortiço diria sobre ela o que disse sobre Rita Baiana: “Tinha ancas largas de égua no cio”. Beleza estonteante, insinuante. É o batom vermelho? E a camisa xadrez apertada, estrategicamente desabotoada para dar a impressão aos fotógrafos do pensamento de que os seios pulariam para fora do sutiã rendado a qualquer inspiração? Sentou-se em frente ao mancebo com seus olhos de piscina pregados nele. Certamente tinha PHD na arte de seduzir. Indiferente ao olhar, enquanto alguns olhos do bar a despiam e outros despeitados a invejavam, o macho alfa levantou a mão, como se fosse fazer uma pergunta ao professor, e gritou com voz de trator: – “Negão!!! Me traiz um chops, dois pastel e uma Coca estupidamente gelada. O chops pra ela e a coca pra mim,(kkkk), que estou guiando”. Será? Ela sorriu maliciosa. Ele a olhou como se a estúpida não apenas fosse a Coca.

– “Depois me traiz dois café com aqueles chocolatinho que só oceis tem”.

– “Dois café, né dotô?”, respondeu com uma pergunta e carregando a bandeja recheada de felicidade adquirida gelada para regar a imaginação.

Todo mundo é “dotô” nesse país. Tem dinheiro? Está disposto a pagar a conta? Então, é “dotô”.

Olhou para ela com aquele olhar de comando e o perdigoto se suicidou com o “S” na palavra: “vamo”. Contei esse episódio, que já virou piada, porque, como sou cego casado ou casado cego e o meu cúmplice de muitos chopes é surdo, mudo e niilista. Sorte nossa é que temos um animal piadista à mesa, apelidado por nós carinhosamente de O Boca do Inferno como tradutor. Tem a sutileza de uma mãe exasperada com o boletim do filho vagabundo que estuda, à custa de muito sacrifício, na escola particular.

Voltemos ao que interessa para você desvendar o tema dessa crônica, anódino leitor. Nocauteado pelas evidências, o “S” agoniza na UTI da fala, prestes a ser enviado para o exílio do dicionário. O falante nativo finge não vê-lo, como o faz o rapaz apertado, ou o considera estúpido, como encara com a mocinha enjaulada, ou se acostumou a engoli-lo quando bem quiser, como beber Coca-Cola, porque crê que está guiando alguma coisa. O professor, guardião da gramática, volta e meia, também dá suas escorregadelas. Ninguém está imune ao “erro” por contaminação linguística por mais erudito que seja. Assim são os agrotóxicos encrustado na gaveta.

O coitado do “S”, passou até a sofrer perseguição política, acusado de ser um dos pilares de uma elite intelectual entediante, preconceituosa, defensora do português castiço que não faz concessões. Para o povão, quem pronuncia os “Ss” é tido como pedante. Ora o som é o de /c/, ora o de /z/; ora água o chope, ora sensualiza o Luís, ora bagunça a lógica “Palmeiras é um time”. No final das palavras, indicando plural, é que toma surras homéricas do bom senso.

O calça apertada de boné disse à calça justa com batom insinuante que “tava doido pra chegar a Barretos”. A festa “do pião ia cê da hora”, segundo ele. Ele ia “pegá umas gata”; ela “pudia pegá uns gato” que quisesse, afinal, numa festa como essa “nóis pode tudo”, diferentemente da gramática normativa que vive de TPM. A boca de batom fez biquinho. Dizem os maldosos que, desde que inventaram o biquinho, homem não ganha briga. O da bota estava excitado, não com ela, mas com outra coisa, ia conhecer a cidade, onde ia “fazê” vestibular. Segundo ele, “é um saco fazê essas prova, mais não tem outro jeito pra entrá em medicina prá ajuda as pessoa”. O problema é que o “S” estaria presente nas opções das questões que, logicamente, o derrubariam mais rápido “nas prova” que uma garrafa de corote, caso não começasse a plantá-lo, adubá-lo e aguá-lo todos os dias. “Mas lê é chato, num é?”.

A música popular, seja a da periferia, do sertanejo, da elite branca, usa e abusa do Alzheimer. Ninguém sabe ainda se esse não é um dos grandes segredos de a música ser “popular”. O que se sabe, sem medo de errar nas observações, é que, para ser presidente da república, nos últimos quatro pleitos, o candidato tinha que travar uma verdadeira luta verbal com a língua portuguesa. A vítima maior? O “S”. Só falta a câmara votar alguma lei amalucada: “Morte ao S, junto com esses comunista”. No passado se tentou pelas via de fato: “Nunca, na história desse país, nossos discurso matou o “S” com tanta competência companheiro”. “Quero ver quem matou mais o “S” do que eu?!”. O palanque virou um verdadeiro show de horrores, porque os pronunciamentos feitos à base de improvisos também se tornaram um verdadeiro nocaute na clareza, da coerência, da coesão e do bom senso.

Aproximar-se do povão significa brandir uma espécie de caneta Bic maneta, assassina das concordâncias verbal e nominal. A função de um político, logicamente, não é ensinar gramática à população, mas tem a obrigação de não ferir o bom senso, proferindo frases destrambelhadas, matando descaradamente o “S”: Eu acredito que nós teremos uns Jogos Olímpicos que vai ter uma qualidade totalmente diferente e que vai ser capaz de deixar um legado tanto… porque geralmente as pessoas pensam: ‘Ah, o legado é só depois’. Não, vai deixar um legado antes, durante e depois.

Aviso aos torcedores: “Palmeiras é um time” e não “Palmeira são um time” (concordância). Aviso ao presidente de um certo clube: “Nóis corintiano amamo nosso time, amamo nosso manto sagrado”. Aviso aos de botas e bonés e também aos que não usam essa indumentária característica: “As provas de redação dos diversos vestibulares devem ser redigidas na norma culta padrão da língua portuguesa”, portanto deem uma chance a vocês e ao “S”, senão correm o risco de tropeçar e cair na armadilha de Drummond: “No meio do caminho tinha uma pedra, tinha uma pedra no meio do caminho”.

Politizado leitor: antes que tente achar pelo em ovo (meu deus! Que catacrese feia), o agroboy e a agrogirl são amigos do Boca do Inferno, leram, riram e hoje fazem curso para aprenderem a escrever dentro da norma culta padrão da língua portuguesa. Ademais esse texto é uma ironia e a luta entre singular e plural não se restringe a lugar, raça, religião, classe social etc, etc. Ficaram extasiados de servirem para amolecer cérebros empedernidos, resistentes a bastanteS aprendizadoS. Ambos acham que é muito melhor ter senso do que censo. Apesar de o “S” não estar no final da palavra. Se errei em algm momento, desculpe-me, é a contaminação. Agora boto um ponto final neste arrazoado.

P.S: o agroboy quase passou para a faculdade de medicina, via SISU. Quem sabe, no final do ano, passe e aí sim possa ajudar as pessoas como se sempre quis.


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